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Foto do escritorDaniel Maciel

A CENA EM CENA

Atualizado: 17 de nov. de 2020

Compartilho a tradução feita por mim de um trecho do livro "Writing for Emotional Impacts" de Karl Iglesias.


Mas antes de ir para o texto em si, algumas observações. Eu procurei a cena em questão na internet, mas não a encontrei completa. Por isso postei a mesma no momento do texto em que ele pedirá que você a assista.Porém, se você realmente se interessa por roteiro e dramaturgia sugiro que tenha este filme sempre à mão, pois ele é magnífico! Caso te interesse, você pode adquiri-lo através deste LINK


Depois de discutir inúmeras técnicas e ferramentas para a escrita, Karl Iglesias utiliza seus recursos para a análise da cena.

"A Cena em Ação"


"Vamos ver uma cena clássica de “O Silêncio dos Inocentes”, filme muito aclamado pela crítica e um dos grandes favoritos do público, adaptado do romance de Thomas Harris por Ted Tally. A cena em questão é a qual Clarice Starling confronta Hannibal Lecter pela quarta e última vez, desesperada por uma última pista que a ajude a pegar Buffalo Bill. Escolhi esta cena porque é um das mais fascinantes, hipnotizantes, e mais intensas que já li e vi. Após a análise, creio que entenderá o por quê. Ela também contém muitas das técnicas apresentadas neste capítulo. Uma vez que o roteiro é um pouco diferente do filme, eu vou usar uma transcrição em vez das páginas do roteiro. Sugiro que você veja a cena primeiro e sinta seu efeito emocional, e depois, leia a cena algumas vezes para perceber as técnicas em ação." "No filme, a cena tem sete minutos de duração, mas por causa do desespero de Clarice e da tensão do contexto, parece ter apenas sete segundos. Começando pelos elementos básicos de uma cena dramática, sabemos que a cena se passa à noite, no quinto andar da Sociedade Histórica County Shelby, em Memphis, que foi fechada para acomodar uma cela especial para Lecter. Como em seus encontros anteriores, esta cena é de Lecter. Embora ele seja o prisioneiro, ele sabe que detém o poder por ter as informações que Clarice quer. Ele também é mais velho e mais sábio, enquanto Clarice é uma aprendiz. Lecter quer entrar na alma de Clarice e se alimentar das experiências traumáticas da infância dela. Por sua vez, Clarice quer pegar Buffalo Bill. Ela suspeita que, na cena anterior, Lecter tenha dado pistas falsas, pois a promessa de Clarice, - de uma cela especial em uma ilha com vista para o mar -, se mostrou falsa.

O conflito de ambos os personagens é claro. As apostas são altas para Clarice. A cena tem um começo, meio e fim, com dois pontos de virada. A cena tem um arco dramático que começa no negativo para Lecter – ele ainda é um prisioneiro, sem nenhuma recompensa por sua ajuda, e ansioso pelos segredos emocionais de Clarice. E termina no positivo - Clarice revela o evento traumático de sua infância, o que faz com que Lecter revele informações que ajudam Clarice salvar Catherine de Buffalo Bill. Esta é uma cena de perseguição e captura para Lecter. Aqui estão as batidas individuais que compõem a cena:


OS trechos do roteiro NÃO ESTÃO DEVIDAMENTE FORMATADOS!

Dentro da cela, o Dr. Lecter senta-se em uma mesa, lê, de costas para Clarice.


LECTER

 (sem se virar):

Boa noite, Clarice.


Batida # 1 - Clarice pede desculpas e tenta mostrar seu lado bom. Ela devolve os desenhos apreendidos de Lecter, coloca-os próximo das grades da cela


CLARICE

Achei que gostaria de ter seus desenhos de volta, doutor. Só até conseguir sua vista para o mar.


LECTER

Muito atenciosa... Ou Jack Crawford a mandou fazer uma última tentativa... antes que vocês dois sejam chutados do caso?


CLARICE:

Não, eu vim porque quis.


Lecter se vira e a encara (Nota do tradutor)


LECTER

As pessoas vão dizer que estamos tendo um caso.


Batida # 2 - Lecter a repreende pela mentira tola sobre a vista.


LECTER

(Estala com a lingua diversas vezes)

llha Anthrax... Foi um toque muito especial, Clarice. Ideia sua?


CLARICE

Foi.


LECTER

Yeahh. Essa foi boa. Mas lamento pela coitada da Catherine. Tic-tac, tic-tac...


Batida # 3 - Clarice mostra astúcia, que pode descobrir as pistas falsas de Lecter.


CLARICE

Seus anagramas estão se denunciando, doutor. Louis Terrefedo? Sulfeto de ferro. Também conhecido como ''ouro de tolo''.


LECTER

Oh, Clarice, seu problema é que precisa se divertir mais.



Batida # 4 - Clarice quer mais pistas sobre Buffalo Bill. Lecter responde indiretamente, provocando-a.


CLARICE

Você estava me dizendo a verdade lá em Baltimore. Por favor, continue.


LECTER

Bem, eu li as pastas do caso. Você leu? Tudo que precisa descobrir está naquelas páginas.


Batida #5 – Clarice está impaciente e desesperada, o tempo está se esgotando.


CLARICE

Então, diga-me como.


LECTER

Os princípios básicos, Clarice. Simplicidade. Leia Marco Aurélio. De cada coisa em particular, pergunte: O que é isto em si? Qual é a sua natureza? O que ele faz? O que ele procura?


CLARICE

Ele mata mulheres.


LECTER

(repreende Clarice com firmeza)

NÃO, isso é incidental. Qual o princípio do que ele faz? A que necessidade atende matando?


CLARICE

Raiva... aceitação social... frustração sexual...


LECTER

NÃO! Ele cobiça. Essa é a natureza dele. E como começamos a cobiçar, Clarice? Buscamos coisas a que cobiçar? Faça um esforço para responder logo.


CLARICE

Não, nós só...


LECTER

NÃO, começamos a cobiçar o que vemos todos os dias. Não sente os olhos que percorrem seu corpo, Clarice? Seus olhos não procuram as coisas que deseja?


CLARICE

Tudo bem, sim. Agora, por favor, diga-me como.


Batida #6 – Lecter vira o jogo a seu favor, quer saber mais sobre o passado de Clarice, é o primeiro ponto de virada da cena.


LECTER

Não. É sua vez de falar, Clarice. Não tem mais férias a vender. Por que saiu da fazenda?


CLARICE

Doutor, não temos mais tempo para isso agora.      


Batida #7 – Lecter insiste, Clarice se desespera.


LECTER

O tempo não corre da mesma maneira para nós dois, não é? Este é todo o tempo de que dispõe.


CLARICE

Mais tarde. Por favor, escute. Só temos cinco...


Batida #8 – Lecter insiste novamente. Clarice finalmente se rende.


LECTER

NÃO! Vou ouvir agora. O assassinato de seu pai a deixou órfã aos 10 anos. Foi morar com primos numa fazenda de carneiros e cavalos em Montana. E... ?


CLARICE

Numa manhã, eu simplesmente fugi.


LECTER

Não ''simplesmente'', Clarice. O que a fez fugir? Começou a que horas?


CLARICE

Cedo, ainda escuro.


LECTER

Aí, algo a despertou. Foi um sonho? O que foi?


CLARICE Ouvi um ruído estranho.


LECTER

O que foi?


CLARICE

Foram... gritos. Uma espécie de grito, como a voz de uma criança.


LECTER

O que você fez?


CLARICE

Eu fui... lá para baixo. Para fora. Me esgueirei até o celeiro. Estava com medo de olhar lá dentro, mas tinha de olhar.


LECTER

E o que você viu, Clarice? O que você viu?


CLARICE

Cordeiros. Eles gritavam.


LECTER

Estavam abatendo os cordeiros na primavera?


CLARICE

E eles gritavam.


LECTER

E você fugiu?


CLARICE

Não. Primeiro, tentei libertá-los. Abri a porteira do celeiro.  Eles ficaram parados, confusos. Não conseguiam fugir.


LECTER

Mas você podia fugir e fugiu, não?


CLARICE

Sim, peguei um cordeiro e corri o máximo que pude.


LECTER

Para onde estava indo, Clarice?


CLARICE

Não sei. Não tinha comida ou água... e estava muito frio. Estava frio demais.  Eu pensei... Pensei que se pudesse salvar um só... mas ele era tão pesado. Ele era tão pesado. Tinha corrido poucos quilômetros quando o carro do xerife me pegou. O fazendeiro ficou tão zangado que me mandou para um orfanato. Nunca mais vi a fazenda.


LECTER

O que houve com seu cordeiro, Clarice?


CLARICE

Eles o mataram.


Batida #9 – Lecter relaxa, ele compreende o passado de Clarice.


LECTER

Ainda acorda no meio da noite, não é? Acorda no escuro... e ouve os gritos dos cordeiros?


CLARICE

Sim.


LECTER

E pensa que, se salvar a coitada da Catherine... poderá fazê-los parar, não é? Acha que, se Catherine escapar... nunca mais vai acordar no escuro... com os horríveis gritos dos cordeiros.


CLARICE

Não sei. Eu não sei.


LECTER

Obrigado, Clarice. Obrigado.


Batida #10 – Clarice desesperada espera o que Lecter prometeu. Mas eles são interrompidos pelo Dr. Chilton – o segundo ponto de virada da cena.


CLARICE

Diga-me o nome dele, doutor.


Eles ouvem a porta se abrindo.


LECTER

Dr. Chilton, suponho. Acho que se conhecem.


Dr. Chilton aparece com Sgr. Pembry and Boyle ao seu lado.


Dr. Chilton

Nós a encontramos. Vamos.


Batida #11 – Clarice insiste.


CLARICE

É sua vez, doutor.


Dr. CHILTON

Fora!


CLARICE

Diga-me o nome dele.


SGT. BOYLE

Desculpe, moça, tenho ordens de colocá-la num avião.


LECTER

Corajosa Clarice. Me avisará quando os cordeiros pararem de gritar, não é?


CLARICE

Diga-me o nome, doutor!


Batida #12 – Lecter agradece Clarice por tê-lo deixado ver sua alma, e diz adeus de maneira apropriada, no clímax da cena.


LECTER

Clarice! Sua pasta.


Clarice se desvencilha dos policiais e corre para a cela de Lecter. Quando ela chega às grades para pegar o arquivo da mão estendida de Lecter, seus dedos se tocam.


LECTER

Adeus, Clarice.



Clarice abraça a pasta ao peito, olha para Lecter enquanto os homens a afastam dali.


O que faz desta cena tão fascinante é, naturalmente, a relação improvável entre os dois personagens. Alguns elementos sugerem uma história de amor, e esta cena pode ser vista como uma cena de amor entre os dois desenvolvida na revelação íntima de Clarice sobre os cordeiros gritando, e um toque físico final, quando por um momento, seus dedos se tocam (um momento chocante) – claramente, há muito subtexto nessa cena. Mas há outras técnicas que adicionam impacto emocional ao invés de transformá-la em uma cena expositiva. Nas mãos de um escritor amador, esta cena poderia ter ficado maçante. Em vez disso, Thomas Harris no romance, e Ted Tally na adaptação, utilizaram diversas técnicas, dentre as quais, estas:


Paleta Emocional: Motivações dos personagens; o desespero de Clarice pela ajuda de Lecter. Desespero que aumenta com o desenvolver da cena, e ela se rende ao jogo de Lecter, o que a ajuda a purgar seus próprios demônios. Para Lecter, suas ações são motivadas pela frustração inicial ao ter sido enganado, porém, ele realmente gostaria de ajudar Clarice e desafiá-la, como um bom mentor deve fazer, e, finalmente a sua intensa curiosidade sobre o passado de Clarice. Os escritores também se preocuparam com a resposta emocional ao leitor e tiveram cuidado com o conflito na cena – Clarice precisa desesperadamente de pistas para pegar Buffalo Bill e provar seus valor, por sua vez, Lecter não quer compartilhar estas pistas depois de ter sido enganado com a falsa o promessa de uma cela com uma vista para uma paisagem.


Por si só, estes elementos já seriam suficientes para se escrever uma cena interessante. Mas há mais. Há a dúvida se Lecter revelara alguma pista que ajude Clarice, e o interesse pessoal de Lecter no passado de Clarice, que ele irá utilizar como “pagamento” pela pista. O passado de Clarice se revela aos poucos através de um interrogatório com diálogo ativo, perguntas e respostas que constroem uma vitrine emocional do conflito interior de Clarice. Há também uma inversão do clichê dos filmes policiais, uma vez que é o prisioneiro que acaba interrogando o agente do FBI.


O Contraste é evidente em toda a cena, podemos notar diversas oposições: (Clarice livre, Lecter preso), entre os personagens (bem contra o mal), entre os comportamentos individuais (natureza violenta de Lecter e depois a suave carícia no dedo de Clarice), e entre as batidas da cena (desde o desespero de Clarice e a sua lenta e longa revelação). A revelação de Clarice sobre os cordeiros gritando é uma surpresa, tanto para Lecter como para o espectador. É também uma revelação de caráter que ilumina as motivações de Clarice e que fizeram com que ela se tornasse uma agente do FBI e proteger aqueles que são vulneráveis. Além disso, esta informação serve como um “resolução” emocional estabelecida entre Clarice e Lecter no encontro anterior, quando ela começou a compartilhar seu passado através do acordo  Quid Pro Quo.


Os desenhos de Lecter, que Clarice devolve depois do Dr. Chilton tê-los confiscado, podem ser visto como um elemento a dar bastante significado à cena. Eles podem ser vistos como uma demonstração de amizade, um símbolo da compaixão de Clarice para Lecter, ou um suborno para fazer com que ele fique mais disposto a ajudar.


Há um equilíbrio muito bem delineado entre satisfação e frustração nas batidas da cena. Olhe para cada uma das batidas e observe como Clarice consegue o que quer de Lecter – mas não como ela esperava – Lecter desafia-a até entregar a resposta de que o assassino cobiça. Inicialmente, Lecter também se frustra quando Clarice se recusa a revelar o seu segredo, mas ele insiste e se satisfaz com a rendição de Clarice. Em poucas batidas e viradas de cena, Lecter vai desde exigir que Clarice revele seu segredo sobre os cordeiros até o ponto em que decide ajudá-la. Porém, o Dr. Chilton interrompe a ligação entre tutor e aluno no momento exato em que Clarice receberia sua resposta.


Por fim, o modo como Clarice e Lecter são separados é tenso – O Dr. Chilton e dois policiais escoltam Clarice com truculência para fora, mas não sem antes ela reagir e voltar até Lecter e recuperar seus arquivos. A interrupção do Dr. Chilton é também uma justaposição de dois conflitos simultâneos – Chilton Vs. Clarice e Chilton Vs. Lecter.


E é assim que se cria uma cena fascinante.


A partir de agora, você tem algumas técnicas para elevar sua escrita a um nível profissional. Você já leu sobre elas e viu algumas funcionando em uma cena clássica. Agora é hora de colocar seus conhecimentos para melhorar seus roteiros." _______________________________________________ Este trecho é parte do capítulo, Scenes: Mesmerizing Moments, do livro "Writing for Emotional Impact", de Karl Iglesias. E pode ser encontrado AQUI.


Publicado orignalmente em 7 de dezembro de 2012 no blog cinedramaturgia.blogspot.com

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