A CENA EM CENA
Atualizado: 17 de nov. de 2020
Compartilho a tradução feita por mim de um trecho do livro "Writing for Emotional Impacts" de Karl Iglesias.

Mas antes de ir para o texto em si, algumas observações. Eu procurei a cena em questão na internet, mas não a encontrei completa. Por isso postei a mesma no momento do texto em que ele pedirá que você a assista.Porém, se você realmente se interessa por roteiro e dramaturgia sugiro que tenha este filme sempre à mão, pois ele é magnífico! Caso te interesse, você pode adquiri-lo através deste LINK.
Depois de discutir inúmeras técnicas e ferramentas para a escrita, Karl Iglesias utiliza seus recursos para a análise da cena.
"A Cena em Ação"
"Vamos ver uma cena clássica de “O Silêncio dos Inocentes”, filme muito aclamado pela crítica e um dos grandes favoritos do público, adaptado do romance de Thomas Harris por Ted Tally. A cena em questão é a qual Clarice Starling confronta Hannibal Lecter pela quarta e última vez, desesperada por uma última pista que a ajude a pegar Buffalo Bill. Escolhi esta cena porque é um das mais fascinantes, hipnotizantes, e mais intensas que já li e vi. Após a análise, creio que entenderá o por quê. Ela também contém muitas das técnicas apresentadas neste capítulo. Uma vez que o roteiro é um pouco diferente do filme, eu vou usar uma transcrição em vez das páginas do roteiro. Sugiro que você veja a cena primeiro e sinta seu efeito emocional, e depois, leia a cena algumas vezes para perceber as técnicas em ação." "No filme, a cena tem sete minutos de duração, mas por causa do desespero de Clarice e da tensão do contexto, parece ter apenas sete segundos. Começando pelos elementos básicos de uma cena dramática, sabemos que a cena se passa à noite, no quinto andar da Sociedade Histórica County Shelby, em Memphis, que foi fechada para acomodar uma cela especial para Lecter. Como em seus encontros anteriores, esta cena é de Lecter. Embora ele seja o prisioneiro, ele sabe que detém o poder por ter as informações que Clarice quer. Ele também é mais velho e mais sábio, enquanto Clarice é uma aprendiz. Lecter quer entrar na alma de Clarice e se alimentar das experiências traumáticas da infância dela. Por sua vez, Clarice quer pegar Buffalo Bill. Ela suspeita que, na cena anterior, Lecter tenha dado pistas falsas, pois a promessa de Clarice, - de uma cela especial em uma ilha com vista para o mar -, se mostrou falsa.
O conflito de ambos os personagens é claro. As apostas são altas para Clarice. A cena tem um começo, meio e fim, com dois pontos de virada. A cena tem um arco dramático que começa no negativo para Lecter – ele ainda é um prisioneiro, sem nenhuma recompensa por sua ajuda, e ansioso pelos segredos emocionais de Clarice. E termina no positivo - Clarice revela o evento traumático de sua infância, o que faz com que Lecter revele informações que ajudam Clarice salvar Catherine de Buffalo Bill. Esta é uma cena de perseguição e captura para Lecter. Aqui estão as batidas individuais que compõem a cena:
OS trechos do roteiro NÃO ESTÃO DEVIDAMENTE FORMATADOS!
Dentro da cela, o Dr. Lecter senta-se em uma mesa, lê, de costas para Clarice.
LECTER
(sem se virar):
Boa noite, Clarice.
Batida # 1 - Clarice pede desculpas e tenta mostrar seu lado bom. Ela devolve os desenhos apreendidos de Lecter, coloca-os próximo das grades da cela
CLARICE
Achei que gostaria de ter seus desenhos de volta, doutor. Só até conseguir sua vista para o mar.
LECTER
Muito atenciosa... Ou Jack Crawford a mandou fazer uma última tentativa... antes que vocês dois sejam chutados do caso?
CLARICE:
Não, eu vim porque quis.
Lecter se vira e a encara (Nota do tradutor)
LECTER
As pessoas vão dizer que estamos tendo um caso.
Batida # 2 - Lecter a repreende pela mentira tola sobre a vista.
LECTER
(Estala com a lingua diversas vezes)
llha Anthrax... Foi um toque muito especial, Clarice. Ideia sua?
CLARICE
Foi.
LECTER
Yeahh. Essa foi boa. Mas lamento pela coitada da Catherine. Tic-tac, tic-tac...
Batida # 3 - Clarice mostra astúcia, que pode descobrir as pistas falsas de Lecter.
CLARICE
Seus anagramas estão se denunciando, doutor. Louis Terrefedo? Sulfeto de ferro. Também conhecido como ''ouro de tolo''.
LECTER
Oh, Clarice, seu problema é que precisa se divertir mais.
Batida # 4 - Clarice quer mais pistas sobre Buffalo Bill. Lecter responde indiretamente, provocando-a.
CLARICE
Você estava me dizendo a verdade lá em Baltimore. Por favor, continue.
LECTER
Bem, eu li as pastas do caso. Você leu? Tudo que precisa descobrir está naquelas páginas.
Batida #5 – Clarice está impaciente e desesperada, o tempo está se esgotando.
CLARICE
Então, diga-me como.
LECTER
Os princípios básicos, Clarice. Simplicidade. Leia Marco Aurélio. De cada coisa em particular, pergunte: O que é isto em si? Qual é a sua natureza? O que ele faz? O que ele procura?
CLARICE
Ele mata mulheres.
LECTER
(repreende Clarice com firmeza)
NÃO, isso é incidental. Qual o princípio do que ele faz? A que necessidade atende matando?
CLARICE
Raiva... aceitação social... frustração sexual...
LECTER
NÃO! Ele cobiça. Essa é a natureza dele. E como começamos a cobiçar, Clarice? Buscamos coisas a que cobiçar? Faça um esforço para responder logo.
CLARICE
Não, nós só...
LECTER
NÃO, começamos a cobiçar o que vemos todos os dias. Não sente os olhos que percorrem seu corpo, Clarice? Seus olhos não procuram as coisas que deseja?
CLARICE
Tudo bem, sim. Agora, por favor, diga-me como.
Batida #6 – Lecter vira o jogo a seu favor, quer saber mais sobre o passado de Clarice, é o primeiro ponto de virada da cena.
LECTER
Não. É sua vez de falar, Clarice. Não tem mais férias a vender. Por que saiu da fazenda?
CLARICE
Doutor, não temos mais tempo para isso agora.
Batida #7 – Lecter insiste, Clarice se desespera.
LECTER
O tempo não corre da mesma maneira para nós dois, não é? Este é todo o tempo de que dispõe.
CLARICE
Mais tarde. Por favor, escute. Só temos cinco...
Batida #8 – Lecter insiste novamente. Clarice finalmente se rende.
LECTER
NÃO! Vou ouvir agora. O assassinato de seu pai a deixou órfã aos 10 anos. Foi morar com primos numa fazenda de carneiros e cavalos em Montana. E... ?
CLARICE
Numa manhã, eu simplesmente fugi.
LECTER
Não ''simplesmente'', Clarice. O que a fez fugir? Começou a que horas?
CLARICE
Cedo, ainda escuro.
LECTER
Aí, algo a despertou. Foi um sonho? O que foi?
CLARICE Ouvi um ruído estranho.
LECTER
O que foi?
CLARICE
Foram... gritos. Uma espécie de grito, como a voz de uma criança.
LECTER
O que você fez?
CLARICE
Eu fui... lá para baixo. Para fora. Me esgueirei até o celeiro. Estava com medo de olhar lá dentro, mas tinha de olhar.
LECTER
E o que você viu, Clarice? O que você viu?
CLARICE
Cordeiros. Eles gritavam.
LECTER
Estavam abatendo os cordeiros na primavera?
CLARICE
E eles gritavam.
LECTER
E você fugiu?
CLARICE
Não. Primeiro, tentei libertá-los. Abri a porteira do celeiro. Eles ficaram parados, confusos. Não conseguiam fugir.