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The Americans, nós e os outros. Afinal, quem somos?

Atualizado: 17 de nov. de 2020



Decididamente uma obra prima.

Num primeiro momento podemos entender a série como uma patriotada norte-americana ou um “drama pequeno burguês”, mas se abrirmos mão da preguiça e nos munirmos de um mínimo de boa vontade intelectual podemos ver que não se trata disso.

Dois espiões russos, um rapaz e uma jovem são enviados para trabalharem disfarçados nos EUA, eles devem viver como americanos, devem ter filhos. Construindo personagens dentro de personagens eles se dissolvem em inúmeras personalidades, quem de fato são? Como conseguirão sair desse labirinto? Sabotagem por sabotagem, roubo por roubo, mentira por mentira, assassinato por assassinato covardes e os dois vão se perdendo.

Quantas atrocidades são necessárias para construir um mundo melhor e mais justo? É necessário muito autoconhecimento aqui para não se agir de má fé. Afinal, assassinar uma idosa aposentada e trabalhadora para o benefício da revolução do proletariado é um paradoxo impossível de ser conciliado por uma pessoa efetivamente disposta a “fazer o bem”. Tentando ir mais a fundo, The Americans fala sobre pessoas engajadas em destruir um mundo que elas julgam ser mal, mas que inconscientemente preferem em detrimento daquilo que elas supostamente foram treinadas e doutrinadas a acreditarem conscientemente.

Mas é aqui que entramos em algo que me chama muito a atenção: a relação entre indivíduos e sociedade, ou ainda, indivíduo e estado.

Assistir a essa série coincidiu com eu estar fazendo uma releitura do Raízes do Brasil, clássico da historiografia brasileira escrito por Sérgio Buarque de Holanda. Fazendo um paralelo entre The Americans e Raízes do Brasil percebi uma grande possibilidade de fazer um paralelo entre uma questão central no livro e um aspecto importante da série.

Abaixo transcrevo início do capítulo clássico do livro, O Homem Cordial. Lembro que Sérgio Buarque de Holanda parte da oposição entre estado e família para desenvolver o conceito do homem cordial. Não quero fazer paralelo entre o conceito de homem cordial com The Americans, mas sim do ponto de partida de Sérgio Buarque.

“O estado não é uma ampliação do circulo familiar, e ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o circulo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e ate uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX. De acordo com esses doutrinadores, o Estado e as suas instituições descenderiam em linha reta, e por simples evolução, da família. A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples individuo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável antes as leis da cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formais mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóteses, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência.”

“ninguém exprimiu com mais intensidade a oposição e mesmo a incompatibilidade fundamental entre os dois princípios do que Sófocles. Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família. Antígona, sepultando Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos, da pátria.

“E todo aquele que acima da Pátria

Coloca seu amigo, eu o terei por nulo.”

O Conflito ente Antígona e Creonte é de todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias”.

Talvez fique um pouco obscuro meus comentários, mas se fosse desdobrar de fato a relação disso em The Americans eu daria um grande spoiler. Mas para não ficar muito obscuro, tentarei aqui desdobrar onde esse ponto é central em The Americans. Misha e Nadezhda são espiões soviéticos obrigados a constituírem família nos EUA. Tornam-se assim Philip e Elizabeth Jennings. Eles assumem suas vidas falsas, as quais vivenciam mais tempo do que suas vidas verdadeiras. Estão na casa dos 40, enquanto foram para os EUA com menos de 20. Eles têm dois filhos, Paige e Henry.






Mas a família dos Jennings é uma criação forçada pela KGB, pelo estado soviético. É uma farsa. Mas e Paige? E Henry? São uma família ou não são? O conflito entre estado e família é inevitável e inconciliável. Quando o estado soviético intervém na educação dos filhos dos Jennings e na vocação profissional dos mesmos Philip e Elizabeth percebem que de fato, sua família é uma mentira e o próprio conceito de família é uma antinomia dentro do estado soviético. Uma impossibilidade, uma vez que todos estão a serviço de um bem maior que e definido por uma entidade abstrata para além de qualquer individualidade. E essa tomada de consciência é central para os dois de fato entenderem quem são. Obviamente essa leitura não se aplica apenas ao estado soviético, no entanto talvez ganhe potência pelo fato do estado soviético ter sido uma maximização da ideia de estado totalitário com controle máximo sobre corpos, corações e mentes, e talvez essa sua maior brutalidade. Ao Jennings, ou Nadezhna e Misha, só lhes restam fragmentos de personalidades, disfarces dentro de disfarces. Que talvez, com a dissolução do regime socialista soviético, possam ser enfim construídas depois de tantas perdas.

Só para encerrar, Holly Taylor é ma grande ppromessa da sua geração.



30 de abril de 2019.

Publicado originalmente em https://cinedramaturgia.blogspot.com/

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